Eu queria começar minha fala dizendo que Vidas negras e indígenas sempre importaram. Não é um levante de hoje, é uma história de ações, de valorização, de lutas, de pertencimento, de resistência pelo viés da Cultura, há muito mais de 500 anos no Brasil. Os protagonistas são as pessoas negras e indígenas e os primeiros miscigenados dessa época, que muito infelizmente passaram por um momento de escravidão.
Momento esse que envolve uma travessia atlântica horrenda, em que muitas pessoas morreram no
mar atlântico; envolve um apagamento de identidade e de elos familiares com seus parentes/ país/continente de origem; envolve um trabalho forçado, precarizado, com muita violência. E por cima de tudo isso, a opressão a qualquer manifestação contrária ao sistema escravista.
Burlando o caminho da opressão, essas pessoas criaram organizações com vitrines religiosas,
sustentadas pelo cultivo de uma cultura e avançaram no projeto de liberdade. E por isso, nós
conseguimos estar aqui hoje, dando continuidade a essa história. Para isso eu desejo um paô para a ancestralidade! São Pessoas que morreram lutando pela liberdade. São Pessoas que têm como
sobrenome a palavra liberdade. João Liberdade. Maria Liberdade. Joaquim Liberdade. Joana
Liberdade. Cipriano Liberdade. Ana Liberdade. Benedito Liberdade.
E enquanto essas pessoas se uniam cada vez mais em diversas estratégias, irmandades, quilombos, organizações coletivas que possibilitavam um diálogo entre todos e uma possibilidade de união, de elo, de se irmanar, de se aglutinar, de trocar ideais, de eleger o irmão que vai receber a carta de liberdade, de viabilizar a viagem de um outro que quer mudar de cidade, que quer sair do Brasil ou que quer retornar ao continente africano.
Para contextualizar um pouco essa colonização, acho que um dos grandes problemas do Brasil como país é, justamente, o Brasil ter se formado como nação no momento de ascensão da escravidão (Século XIX). Enquanto todos os países diminuíram o tráfico, o Brasil aumentou; mais tráfico clandestino e desembarque clandestino, tornando-se o maior porto de escravizados do mundo no Século XIX. O que pensar, para fazer uma retratação sobre isso?. Dessa forma, foi permitida a formação de um Estado baseado na violência, na opressão e na desigualdade social, características fundantes do Estado brasileiro presentes até hoje, sendo que essas características agem principalmente sobre pessoas negras e indígenas. E por isso dá tanto trabalho desmontar todo esse cenário sócio-político-cultural, com características coloniais enraizadas na sua fundação. E ainda preciso acrescentar mais uma coisa, esse colonialismo que tanto oprimiu nós mulheres marrons e pretas, com práticas de sexualização dos nossos corpos e violências sexuais, faz com que nós, hoje, sejamos uma das maiores vozes do discurso decolonial. A decolonialidade é um discurso feminista devido a todas essas opressões que mencionei antes e que engendraram o sistema colonial.
Então quem vos fala é uma mulher marrom, racializada, espiritualizada, com ancestrais afro-
indígenas, que vive nessa situação fronteiriça “entre raças” e que nos últimos 6 anos tem trabalhado em coautoria com entidades afro-brasileiras – são meus guias espirituais, a entidade sagrada, os Pretos Velhos, que faço questão de saudar: Pai Cipriano e Maria Conga, Pai Benedito, Vovó Ana e Maria do Rosário. Eu me chamo LUANDA, atualmente, por causa deles; Luanda é um nome coletivo, por ser um trabalho em coatuoria, um nome politizante também, porque quando apresento no meu trabalho de arte as questões de incorporação/transe e os ritos sagrados, estou apresentando um problema sagrado e político, para que o público reflita sobre a intolerância da cultura, o genocídio e o racismo aos povos afro-indígenas. Também quero acrescentar que, embora o trabalho com a incorporação em artes tenha uma forte atuação em registro de imagem fotográfica e vídeo, possui também ligação com o estudo das poéticas da performance em sua aproximação com as religiosidades afro-brasileiras e seus rituais, memórias e pertencimentos.
E todas essas ações e fatos descritos nessa reflexão também podem ser vistas como gestos, são
gestos.
Gestos de negociação, gestos de uma certa união, já que o objetivo central era a liberdade, apesar das etnias/nações diferentes, gestos de solidariedade, gestos de cura, porque as rezadeiras, benzedeiras, curandeiros, já estavam lá na colonização, nas senzalas, não haviam médicos disponíveis para curar as pessoas escravizadas, os médicos das senzalas eram as Pretas e os Pretos Velhos. Que já existiam, não como entidade da Umbanda, mas como essa pessoa da cura, que tinha fé nos orixás e conhecimento de ervas e curavam seus irmãos de senzala.
Gesto é a matéria que vemos por exemplo no vídeo performance “Maria Conga”: essência do gesto de amor, de perdão, de uma delicadeza com que ela manuseia as sementes que compõem o rosário.
O vídeo foi construído a partir de uma imagem que ela me mostrou, enquanto eu estava em transe,
me sugerindo, me inspirando a usar a imagem das duas mãos abertas com o rosário atravessando as mãos. A partir dessa imagem central eu construí o vídeo, a ideia de fazer nascer um rosário de dentro daquelas sementes. E ao mesmo tempo também de devolver esse rosário para as sementes de origem.
E trabalhar com o arquétipo dos Pretos Velhos é trabalhar com muitos símbolos. Tem todo um
vocabulário sagrado, imagético, simbólico, que exprime a liberdade tanto a resistência, como a
opressão. No caso do rosário, acaba sendo um objeto sagrado, um duplo: ele é tanto uma coisa,
opressão, como outra, resistência. Mas acho muito interessante existir essa entidade no Brasil, que
tanto remete à ancestralidade como à espiritualidade africanas, na sua ligação com os orixás e com a lida das ervas. E nós estamos no mês da consciência negra. Então acho que temos muito o que refletir e agir sobre todas essas questões que eu tentei levantar.
Luanda.